Caixa pandora Bitcoin (imagem gerada por IA)

No Bitcoin, a regra sempre foi clara: quem controla a chave privada pode gastar. Esse princípio sustenta a ideia de propriedade direta, neutralidade do protocolo e resistência à censura.

É justamente por isso que uma discussão recente começou a causar desconforto. Pela primeira vez, propostas sérias levantam a possibilidade de que certos bitcoins continuem existindo, mas não possam mais ser usados, mesmo por quem detém a chave.

Nos últimos meses, desenvolvedores e usuários passaram a discutir mecanismos para tornar certos satoshis permanentemente não gastáveis. A justificativa apresentada é técnica: combater spam e evitar que a rede fique cada vez mais pesada. A intensidade da ocorrência, porém, deixa claro que o problema vai muito além da engenharia. O que está em jogo são princípios que sempre foram tratados como básicos dentro do Bitcoin.

Para entender a polêmica, vale esclarecer um conceito central do funcionamento da rede: o UTXO. A vem sigla do inglês Unspent Transaction Output, ou saída de transação não gasta. O jeito mais intuitivo de entender isso é pensar em cédulas de dinheiro físico.

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No Bitcoin, não existe um saldo contínuo como em uma conta bancária. O que você possui são “cédulas digitais” distintas. Cada uma dessas cédulas é um UTXO. Se você tem, por exemplo, um UTXO de 0,3 BTC e outro de 0,5 BTC, seu “saldo” de 0,8 BTC nada mais é do que a soma dessas unidades independentes, do mesmo modo que alguém que tem uma nota de 20 e mais de 50 reais possui 70 reais, mas não uma única nota de 70.

Quando ocorre um pagamento, o sistema funciona da mesma forma que o dinheiro físico. Não é possível rasgar uma cédula ao meio. Um ou mais UTXOs precisam ser gastos por completo.

Se o valor total for maior do que o pagamento desejado, a transação cria novas “cédulas”: uma vai para quem recebeu e, se houver sobra, outra retorna para você como troco, na forma de um novo UTXO. Os UTXOs antigos deixam de existir, assim como uma nota usada em um pagamento não volta para sua carteira.

Esse modelo é simples e eficiente, mas traz uma consequência importante: quanto mais “cédulas” pequenas existem espalhadas pelo sistema, maior é o custo operacional da rede.

Todos os UTXOs ativos formam o chamado conjunto de UTXOs, que precisa ser armazenado e selecionado por todos nós completos. À medida que esse conjunto cresce, operar um nó exige mais memória, mais armazenamento e mais custo. Em um sistema que depende da participação descentralizada, isso não é um detalhe menor.

É nesse contexto que surge o que se chama de spam no Bitcoin. Aqui, spam não significa mensagens indesejáveis, mas a criação massiva de transações ou de UTXOs pequenos sem fins específicos e claros.

Parte disso vem do uso da blockchain para registrar dados permanentes. Protocolos de inscrição de dados como Ordinais e Selos permitir salvar imagens, arte digital, textos, memes, manifestos políticos e documentos diretamente no Bitcoin. Para isso, criaremos muitos UTXOs pequenos que serão usados ​​como dinheiro.

O custo individual desse processo é baixo. Criar um UTXO pequeno pode custar centavos, mas o custo coletivo é permanente, já que todos nós da rede precisamos carregar esses dados indefinidamente.

Estimativas recentes indicam que mais de 30% dos UTXOs existentes hoje estão abaixo de 1.000 satoshis, o que, aos preços atuais, representa algo em torno de cinco reais por unidade.

Esse número, porém, não é fixo. Se o Bitcoin continuar se valorizando, o mesmo limite pode facilmente representar vinte, cinquenta reais ou mais no futuro, transformando o que hoje parece irrelevante em um valor perfeitamente razoável de dinheiro sendo tornado inutilizável.

É a partir daí que surgem as propostas para lidar com o problema. As duas mais discutidas ficaram conhecidas como The Cat e Lynx, e a diferença entre elas ajuda a entender por que o debate ficou tão dividido.

The Cat é uma abordagem mais direta. Ela propõe tornar permanentemente não gastáveis ​​UTXOs abaixo de um determinado valor, como 1.000 satoshis. Como um bitcoin é dividido em 100 milhões de satoshis, isso equivale a 0,00001 BTC, algo próximo de cinco reais com o Bitcoin cotado em cerca de 500 mil reais.

Esses valores continuariam registrados no histórico da blockchain, mas seriam removidos do conjunto ativo que pode ser gasto. O argumento é que esses UTXOs quase nunca são usados ​​como dinheiro e ocupam espaço de forma desproporcional.

O ponto central, porém, não é o valor em si. É o precedente que isso cria ao permitir que o protocolo decida que um bitcoin válido não pode mais ser gasto, mesmo por quem controla a chave. Um sorteio fixo em satoshis, aplicado a um ativo cujo preço pode subir de forma significativa, carrega implicações que vão muito além do momento atual.

Lynx tenta suavizar essa lógica ao introduzir o fator tempo. Em vez de congelar UTXOs apenas por serem pequenos, a proposta sugere que UTXOs muito pequenos que permanecem inativos por muitos anos podem se tornar não gastáveis.

A ideia é diferenciar o abandono real do uso legítimo, oferecendo ao usuário uma longa janela para gastar, se quiser. Ainda assim, o efeito final é semelhante: um UTXO válido deixaria de poder ser usado por regra do protocolo.

Quem defende essas propostas aponta vantagens claras. Congelar esses UTXOs reduziria o tamanho do conjunto ativo, diminuiria o custo de operar nós completos e desincentivaria o uso do Bitcoin como um repositório permanente de dados. Em tese, isso ajudaria a preservar a descentralização no longo prazo.

O problema não é um custo conceitual dessa solução. Desde o início, a regra do Bitcoin sempre foi simples: se um UTXO é válido e você controla a chave correspondente, você pode gastá-lo quando quiser. Não podemos valer a pena economicamente, mas o direito existe. Tanto The Cat quanto Lynx mudam isso. O direito deixaria de existir por decisão coletiva embutida no código.

É por isso que muita gente descreve esse debate como a abertura de uma Caixa de Pandora. Na mitologia grega, Pandora recebe uma caixa que não deveria ser aberta. Ao abrir, libere homens impossíveis de serem recolocados dentro. A metáfora costuma ser usada quando uma decisão aparentemente pequena desencadeia consequências que fogem completamente ao controle de quem a tomou.

No caso do Bitcoin, a comparação faz sentido porque o sistema nunca foi projetado para julgar. Ele não decide se um uso é legítimo ou não, se um valor é pequeno demais ou se um UTXO ficou velho demais. Ele apenas aplica regras matemáticas previsíveis. Ao discutir a possibilidade de tornar certos satoshis não gastáveis, mesmo que por bons motivos técnicos, o protocolo dá um passo novo: passa a decidir o que pode ou não circular.

Hoje, o argumento é eficiência técnica e combate ao spam. Amanhã, poderia ser outro igualmente razoável à primeira vista: sustentabilidade, segurança, conformidade ou pressão política. O recebimento não é perder alguns reais em satoshis. É aceito que o Bitcoin comece a operar com abordagens e critérios que nunca fizeram parte de sua promessa original.

É por isso que o debate divide tantas opiniões. Por outro lado, há o medo de que o crescimento contínuo do conjunto de UTXOs torne a operação de nós cara demais e leve à centralização técnica. Além disso, há o medo de que o Bitcoin se afaste da neutralidade e da previsibilidade que sempre foram parte central de sua proposta.

No fundo, essa discussão não é apenas sobre spam ou otimização. Ela é sobre identidade. Mantenha tudo como está tem custos claros. Mudar regras para obter eficiência também tem consequências profundas. A pergunta que fica é se vale a pena abrir essa Caixa de Pandora em um sistema que sempre se destaca justamente por não precisar decidir esse tipo de coisa. E, uma vez aberta, se ainda for possível fechá-la.

Fonteslivecoins

By Ralph

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